#33 | Eu morri, matei, mas continuo aqui.
Reflexões sobre como foi viver após a violência doméstica e dores ordinárias inerentes à vida.
[ALERTA DE GATILHO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA]
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Você já matou alguém?
Ou melhor, alguém já te matou e mesmo assim você continuou respirando?
Tive o desprazer de fazer meu passado e presente se encontrarem de uma maneira brusca e crua. Traumas que no presente eu jurava estarem superados, mas a avalanche densa das memórias me devolveu, sem aviso, àquele mesmo lugar de vulnerabilidade. Estava no olho do furacão de uma lembrança: simultaneamente enfrentava meu próprio assassinato executado por alguém que ainda teve o desplante de apertar minha mão, sem sequer sustentar o olhar. A morte, às vezes, vem polida.
Sempre fui categórica ao dizer que eu não representava os meus traumas. Eles atravessaram minha história como lâminas cegas que feriram fundo, mas não me definiram. Eu os carrego como quem carrega um nome que não escolheu, literalmente com meu último sobrenome. Me calejaram, sim, mas recusei que minha existência fosse comprimida entre os parênteses dos meus piores anos. Para um breve contexto: fui vítima de violência doméstica pelo homem que me deu uma parte da vida. Eu, minha mãe e minha irmã fomos vítimas diretas até os meus dezoito anos.
A violência não acaba quando o agressor deixa a casa. Ela só muda de forma. No nosso caso, mesmo com a separação, ele usou o direito de família de ver as filhas menores como instrumento de tortura psicológica. Cada visita forçada era um inferno repugnante.
Digo isso como jurista: o Direito não foi feito para mulheres. Muito menos para mulheres em situação de vulnerabilidade. As leis nos protegem no papel, mas nos abandonam nos corredores do fórum, nos julgamentos morais e na frieza dos autos.
Enquanto tudo isso acontecia, eu ainda era menor de idade e tinha que lidar também com as dores ordinárias da adolescência, como as decepções, inseguranças e hormônios. Sofri calada, porque ninguém podia saber o que acontecia quando saía da escola. Quando esses dois mundos colidiam com a violência, se tornavam insignificantes, grãos de cimento numa casa já demolida.
Os resquícios do trauma não te deixam. Eles te habitam e caminham com você como fantasmas. Há comportamentos que parecem seus, mas são deles. As mãos que tremem, os silêncios longos, a desconfiança do afeto. As cicatrizes da violência não se curam. Elas criam raízes que sustentam uma árvore.
E lá estava eu, agora com 27, revivendo meu trauma mais íntimo com uma enxurrada violenta de memórias vividas, enquanto também lidava com uma decepção atual. Era como se minha história tivesse decidido brincar de espelhos, porque um refletia a origem do outro.
Fiquei imersa naquele estado de transe. Congelada por dentro. Ainda assim, sorrindo, fazendo piadas com quem estava por perto. Afinal, o pior tipo de pessoa é a depressiva funcional, porque é aquela que sabe chorar com o rosto limpo e que sente demais sem nunca pesar o ambiente. São essas que mais apanham.
Naquele momento percebi que havia sido morta por uma pessoa. E que ela estava ali, a poucos metros, intacta. Se algum dia fui genuinamente sua primeira opção, ali estava entre as últimas. Reconheci no olhar desinteressado a indiferença fria do Quatro de Copas: o vinho que eu servia já não era digno ao seu paladar.
Eu matei uma outra pessoa junto dela e fui morta da mesma forma. Um disparo duplo, sem honra nem aviso. O sangue que escorreu de mim era espesso como vinho argentino, mas já não lhe agradava mais. A recusa me fez tornar o Eremita. E agora, com as mãos ainda sujas do que fiz, me resta girar a Roda da Fortuna, esperando que algo que sempre foi meu seja meu de volta.
Foi uma guerra fria entre meu passado e meu presente. Dois abandonos, com anos de diferença, sentados à mesma mesa onde estava. A vida seguiu, como sempre segue. Mas o trauma não envelhece com você. Um som, uma frase, ou uma casa bastam para você voltar para a sala do primeiro soco.
Hoje não sou mais a menina implorando para ser salva. Fui a mulher que cavou a cova, enterrou a dor com as próprias mãos e voltou. Quebrada, mas altamente funcional. Quebrada, mas extremamente furiosa. Ser cruel, às vezes, é um gesto de autopreservação.
Há um tipo de poder perverso em sobreviver ao que quiseram que te matasse e uma forma silenciosa de vingança é continuar existindo com altivez, enquanto os algozes carregam o fardo de não terem conseguido destruir por completo aquilo que queriam apagar.
E para todos que me mataram, continuo sendo A Imperatriz. Já à quem matei, vou continuar girando a roda da fortuna todo mês.
Esse talvez seja um dos textos mais íntimos que tenha feito e foi bem naquela velha história de “ah, isso não me afetou em nada” e chegar em casa e passar três dias escrevendo.
Assumir que fui vítima de violência doméstica é como sair do armário, porque eu raramente falo sobre isso. Pouquíssimas pessoas tem a maturidade de ouvir sobre isso e não sentirem pena de mim. Eu não quero que sintam pena, quero que me vejam como uma pessoa que passou por tudo, que ainda tem recaídas, mas segue firme.
A violência não é determinante para a nossa vida e é ainda bem possível de ser feliz, apesar dela.
Espero que gostem e que toque nos lugares que vocês precisam ouvir.
Até semana que vem (:
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